Metade comédia romântica, metade drama, Flora e Filho, disponível na Apple TV+, marca o regresso do realizador John Carney ao registo musical que lhe deu nome. Um simples e modesto filme, ainda assim capaz de revelar uma estrela: Eve Hewson.
Já a tínhamos visto em papéis mais ou menos discretos, por exemplo, n”A Ponte dos Espiões, de Spielberg, ou ao lado de Ethan Hawke em Tesla, mas faltava-lhe aquela margem de exposição que só um papel de protagonista dá, trazendo à tona (se for caso disso) a energia plena de uma atriz. Esse papel revelação surge agora, para a irlandesa Eve Hewson, num filme levezinho de John Carney, Flora e Filho, onde interpreta uma mãe solteira que tenta conciliar as suas responsabilidades com a juventude que ainda transporta dentro de si numa Dublin repleta de pequenos incentivos musicais. Depois de sete anos sem assinar um filme, o realizador de No Mesmo Tom, Num Outro Tom e Sing Street, volta aos seus romances modelados pelo poder da música, desta vez baralhando as notas amorosas com a melodia difícil entre uma mãe e um filho.
Se é verdade que conhecemos bem o estilo de personagem que Hewson assume aqui – a jovem mulher da classe trabalhadora com os seus problemas e expressão de cansaço, a sinalizar vestígios de um cinema de realismo social -, o que vai ficando evidente à medida que Flora cresce no ecrã é uma personalidade que rasga os padrões, nunca se acomodando só à imagem do desconsolo ou só ao espírito desembaraçado que geralmente define estas personagens de pulso. Eve Hewson incorpora ambos os lados da moeda, mas é também extremamente deliciosa nos seus cambiantes de fúria, espontaneidade e esperteza selvagem, que a levam da ordinarice mais cómica à fragilidade mais tocante.
E é por ela, pela sua paulatina explosão no ecrã, que Flora and Son ganha alguma envergadura. Um filme, à partida, centrado nessa mãe e no seu filho adolescente, cujo quotidiano está a precisar de algo próximo de um “corretivo” musical… ou não fosse uma obra de Carney. Assim acontece quando ela encontra, num camião do lixo, uma guitarra clássica que manda arranjar para oferecer ao filho. Resultado: o miúdo não está virado para os sons acústicos (a sua inclinação é a música eletrónica) e ela acaba por aproveitar a presença do instrumento, começando a pesquisar aulas online para aprender a tocar guitarra. Aí surge a personagem assumida por Joseph Gordon-Levitt, um músico falhado que, a partir de Los Angeles, ensina Flora a manusear as notas, ao mesmo tempo que vão criando juntos a sua própria canção – quando a concretizam, à noite num terraço, transcendendo a barreira física do laptop, há uma magia démodé que se liberta dentro de um registo indie nostálgico e que garante a Flora e Filho o seu pico musical. Já agora, bem melhor do que o tema que encerra o filme.
Mas, ao contrário do que seria de esperar, esta janela romântica não é o ponto de chegada da protagonista: leia-se o título. Na linha da tradição e estilo do realizador irlandês, este está interessado no processo da música enquanto força regeneradora, aqui, entre mãe e filho. Não se detetam outras ambições neste simpático e despretensioso trabalho, que tem, na sua pequena escala, a capacidade de nos pôr em contacto com um talento em bruto. Eve Hewson não é apenas filha de Bono Vox, mas uma estrela com nome próprio.
Fonte: Diário de Notícias